domingo, 14 de julho de 2013

Capítulo Um.


Dizem que os olhos são o espelho da alma. Nunca acreditei muito nisso, até hoje. Pela primeira vez, eu mesma consigo decifrar o meu estado de espírito. Normalmente, nem eu sei como me sinto. Mas hoje, eu sei. Estou bastante entusiasmada, e sinto-me feliz. É o sonho de qualquer pessoa. Ganhar a lotaria, despedir-se do seu emprego entediante e viver os seus sonhos. Depois de me maquilhar, lembrei-me que ainda nem tinha tratado do cabelo. Peguei rapidamente no pente e escovei calmamente o cabelo, enquanto me olhava ao espelho, com um sorriso radiante. Fiz um rabo-de-cavalo da melhor forma que consegui, arrumei as coisas na minha malinha, e assim que terminei, saí da casa de banho. Olhei o meu quarto agora vazio. Virei-me ligeiramente para a direita, o sítio onde estava a secretária. Recordei as noites que passei a trabalhar, enquanto trabalhava para aquele jornal patético. Fui obrigada a escrever coisas que nem sequer eram verdade, só para cativar mais leitores e manter os lucros que estavam em declínio. Mas, o que podia fazer eu, na altura? Absolutamente nada. Não me podia arriscar a despedir-me. Como isto está, nunca mais encontrava um emprego que me desse o salário que recebia com aqueles. Mas o karma ajudou-me. Eu ganhei a lotaria, e pouco tempo depois de me demitir, o jornal faliu. Fecharam as portas. Sorri com o meu pensamento, e segurei a mala com mais força. Respirei fundo e preparei-me, despedindo-me em silêncio do meu quarto, daquele humilde apartamento.

 - Senhora Angelique Maundrell, está tudo embalado e nos camiões. Estamos prontos. – Afirmou uma voz masculina, vinda de uma divisão não muito distante. Suspirei e sem grandes demoras, fui até à sala de estar, encontrando-me então com o tal senhor. Estava ali a ajudar-me com a mudança. Obviamente que paguei para isto.
 - Ainda bem, muito obrigado. Vamos partir já de seguida. Pode ir andando lá para fora, eu vou só… Ver umas coisas. – Disse apenas, esperando que saísse.

Assim que o fez, eu vagueei uma vez mais pelas divisões, completamente vazias. Nem me acredito que vou sair daqui. Sempre quis viver no campo, na paz e no sossego do senhor, e agora vou finalmente concretizar esse pequeno sonho. Despedi-me da minha casa, das recordações… Praticamente, despedi-me da minha vida antiga, e cumprimentei a nova. Sem mais demoras, peguei na minha mala, colocando-a ao ombro, e segurei a mala que continha a maquilhagem com a mão esquerda. Saí de casa e tranquei a porta. Desci os degraus até ao rés-do-chão e entreguei as chaves na recepção do prédio, como combinado. Quando dei por mim, já estava no meu carro. Pus as chaves na ignição, e dei início até à aldeia onde vou viver.

Eram quase cinco da tarde quando lá chegámos. Não demorámos assim tanto como pensei. Uther Whitlock estava já à nossa espera. Estacionei o carro, desliguei-o, saí sem grandes pressas e tranquei o mesmo. Dirigi-me para Uther e cumprimentei-o.

 - Boa tarde Uther, como está? Finalmente, chegou o dia! – Sorri, toda entusiasmada, fazendo sinal ao pessoal das mudanças para começarem a tratar de levar as coisas para dentro. E foi isso mesmo que eles começaram a fazer, enquanto eu falava com Uther.
 - Bem, visto que já está tudo pago, falta só entregar-me as chaves, Senhor Whitlock… - Disse num tom não muito alto, olhando-o ainda sorridente. Franzi ligeiramente o sobrolho ao ver alguma hesitação da sua parte, mas tentei não ligar muito a isso. Não deve ser fácil dar as chaves de uma casa como esta a uma estranha. Será que era muito ligado à casa? Agora que  penso nisso, eu não sei praticamente nada.
 - Com certeza, Menina Angelique. – Disse pouco entusiasmado, procurando as chaves no bolso das calças, do lado esquerdo. Assim que alcançou as mesmas, retirou-as lentamente e deu-mas.
 - Muito obrigado, Senhor Whitlock. – Houve um silêncio inquietante, e uma estranha troca de olhares. Sentia que ele tinha vontade de dizer algo, mas não sabia se o havia de fazer. – Há algo que me queira dizer? – Questionei, esperando uma resposta sua enquanto mexia no molho de chaves.
 - Na verdade, sim. Eu estou habituado a tomar conta desta casa. Eu era mordomo e empregado desta mesma casa há anos atrás. E gostaria muito que pudesse continuar com esse cargo – Informou, olhando-me nos olhos. Um empregado? Mordomo? Bem que dava um certo jeito, mas eu não estou habituada ainda a tal coisa.
 - Senhor Whitlock, eu não sei se…
 - Por favor, Menina Angelique. É a única coisa que lhe peço. E a minha mulher também gostaria de permanecer o seu cargo nesta casa. Ela era cozinheira, e gostava imenso de puder reviver esses anos de felicidade, em que serviu nesta casa. – Ele olhava-me nos olhos e falava com um certo entusiasmo. Era quase que se me estivesse a implorar, sem o estar a fazer na realidade. Eu pensei durante uns meros segundos e respondi.
 - Está bem, eu aceito que trabalham para mim, Senhor Whitlock. Eu não sabia que o Senhor tinha esposa, não me tinha referido isso. – Olhei rapidamente as suas mãos que tremiam ligeiramente. Não podia ser do frio, pois até estava uma boa temperatura naquele dia. Não fazia frio, nem calor. Uma boa temperatura, amena. Por isso, porque estaria ele a tremelicar? Nervos? Ansiedade? Medo? Não, certamente que é do entusiasmo. Parece-me que ele tem uma forte ligação com esta casa, e talvez a sua mulher também.
 - Tenho sim, Menina Angelique. É normal, ainda só falámos sobre pequenas coisas, para que a Menina pudesse adquirir a casa e mudar-se para cá o mais cedo possível. Mas não se preocupe, pois agora as coisas estão já muito bem encaminhadas, e podemos começar a colocar a conversa em dia. Aí sim, poderá fazer todas as perguntas que desejar. – Um pequeno e doce sorriso invadiu-lhe e iluminou-lhe o rosto. Ouvi novamente aquela voz masculina a chamar-me, para saber onde haviam de montar certos móveis, pôr os sofás, e todas essas coisas.
 - Sim, claro. Peço desculpa, Senhor Whitlock, mas tenho de ir tratar de ajudar os senhores com a mudança.
 - Com certeza, Menina Maundrell. Gostaria que a minha esposa lhe preparasse o jantar? Assim pode começar já a habituar-se a estas pequenas mordomias – Voltou a sorrir-me com um certo carinho e afecto, e tocou levemente no meu braço, com a sua mão fira. Eu retribuí o sorriso e assenti.
 - Claro que sim, acho uma excelente ideia! Sendo assim eu acho que vou informar os homens para começarem a tratar primeiro da cozinha, e assim a sua senhora poderá depois fazer o jantar à vontade. – Retorqui, ajeitando a mala ao ombro.
 - Com certeza, Menina. Irei informá-la de imediato. Às oito em ponto o jantar estará servido. – Informou-me, baixando ligeiramente o rosto, como se me fizesse uma vénia. Assenti e fui de imediato informar os homens para que começassem com as coisas da cozinha. Assim que chegámos à mesma, reparámos que já tinha armários. Apesar de terem um óptimo aspecto e de serem novinhos em folha, via-se na perfeição que eram antiquados. Não sei porquê, mas agradavam-me bastante. Eu era fascinada por coisas de épocas passadas desde pequena, por isso, viver naquele enorme casarão, que fora construído no século passado, é um sonho tornado realidade.

Sete horas e vinte e três minutos, marcava o relógio do meu telemóvel. Tudo estava pronto, nos sítios que eu escolhera. Os senhores da mudança já tinham saído, e eu estava completamente sozinha ali. Era tudo tão silencioso que dava para ouvir as folhas das árvores que rodeiam a casa a embaterem umas nas outras. É uma melodia simplesmente fabulosa. Sinto-me em paz, e em harmonia. Respirei fundo e subi as escadas, indo para o meu quarto. Fui directamente para a casa de banho. Estava decidida a tomar um banho de sais, para relaxar ainda mais. Conectei o meu iPod às colunas próprias para o mesmo, e em poucos segundos, Spem In Alium, de Thomas Tallis, começou a tocar, fazendo-me sorrir. Tinha posto na opção para que quando terminasse, voltasse a tocar a mesma música. Dentro de minutos, a banheira estava cheia, coberta de espuma. Entrei na mesma e deitei-me, aconchegando-me e fechando os olhos, deixando-me apreciar o momento enquanto ouvia aquela bela peça, e aquelas vozes angelicais.

Momentos depois, eu terminei o meu banho e desliguei o meu iPod. Retirei-o e guardei-o numa das gavetas da cómoda. Sete horas e cinquenta e dois minutos, marcava o relógio digital que estava sobre a mesinha de cabeceira. Vesti algo prático e cómodo rapidamente. Umas leggings pretas e uma camisola bastante comprida, de igual cor. Escovei bem o cabelo e atei-o agilmente. Cheirava-me a qualquer coisa, o que me assustou. Arrumei a escova e coloquei o telemóvel no bolso da camisola. Calcei as minhas pantufas e saí do quarto, descendo rapidamente as escadas. O cheiro vinha da cozinha. Dirigi-me apressadamente até à mesma, e vi lá uma senhora, ruiva, com uma farda daquelas típicas de empregada, preta e branca, com um avental branco. Eu aproximei-me calmamente dela, e olhei-a. Estava muito empenhada no que estava a fazer.  – Desculpe, você deve ser a…
 - Persephone. Você é a Menina Angelique, correcto? Sou a esposa de Uther Whitlock. Prazer em conhecê-la, menina. Por favor, vá andando para a sala de jantar. – Ordenou com um doce sorriso. Apenas assenti e saí da cozinha, indo então para a sala de jantar. Mas assim que lá cheguei, Persephone e Uther já lá estavam. Ele sentado, e ela em pé, a servir o seu marido. Fiquei de olhos arregalados, a olhá-los.
 - Como é que você…? – Perguntei ainda incrédula, apontando para ela. Ela virou-se lentamente para mim, e começou a caminhar na minha direcção.
 - Atalhos, Menina Angelique.  – Afirmou muito depressa antes que eu pronunciasse mais alguma coisa – Sente-se. – Voltou a ordenar, e eu assim o fiz. O avental dela estava coberto de algo vermelho. Iria jurar que parecia sangue, mas não pode ser. Abanei a cabeça e vi a comida que Persephone me estava a servir. O que é aquilo? Que comida é esta? Ela voltou para o lugar onde estava um prato ainda vazio. Seria certamente o dela. Serviu-se e sentou-se. Ambos olharam para mim, ao mesmo tempo.